Fome – Capítulo 1

•setembro 29, 2014 • Deixe um comentário

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Fome

Capitulo 1

Certo dia, certa tarde – São Francisco de Assis pousou a cabeça numa macieira. Estava cansado de tanto amar todos os seres vivos, e achava que ele mesmo era Deus, pelo tanto carinho que sentia. Quiz uma saudade do ódio, uma saudade do desprezo. Tinha raiva da própria bondade. Que o tornava menos humano – quase santo. A macieira dava frutos.

Então, percebeu que sua cabeça estava pousada na macieira, mas separada do seu corpo, destarrachada – como se fosse um boneco. Enquanto a cabeça estava lá, seu corpo fodia, doía e ardia, normalmente. Até maltratava bichinhos. Quando foi atingir um passarinho com um estilingue, ouviu uma voz – saindo de um cinzeiro. A voz era de Deus, e falava como se fosse através de um pequeno rádio. São Francisco ficou confuso, pois ainda não haviam inventado o rádio. Nem o som mecânico.

-Francisco, acorda.

– Pai?

– Francisco, acorda – você está maltratando os passarinhos. Machucando gatos. Raspando perna de cachorro com gilete…

– Pai, eu não gosto muito de bicho.

– Gosta, gosta sim. Te fiz para isso. Sua vocação na terra é de amar tudo e apesar de todas as coisas.

– Tudo é muita coisa, Pai.

– Mas foi só o que sobrou para você.

Nesse momento, Francisco começou a sentir muito sono, estava quente e tinha brincado muito durante o dia. A cabeça ficou pesada, os olhos fundos. Sentia uma saudades muito grande, e não conseguia mais ouvir a voz de Deus, vinda do cinzeiro. Começou a pescar de sono, sua cabeça rolou na campina abaixo e foi rolando e rolando até encontrar seu corpo, que pelado – estava com uma cinta presa aonde devia ser seu pescoço.

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Luciano acordou depois de ter um sonho muito estranho. Sonhou que era um santo que pecava. Não lembrava dos detalhes, mas despertou com a imagem de uma cabeça rolando num campo verde – de grama alta. Tinha tido febre durante a noite, e sempre quando tinha temperatura quente, sonhava esquisito. Parecia uma lembrança, parecia um filme.

Andava impressionado, pois coisa de uma semana antes, começou a trabalhar num sopão voluntário, desses de igreja. Não era católico, tampouco acreditava em qualquer coisa que não fosse o egoísmo. Mas, a insônia e o álcool o motivavam a arrumar uma maneira de se cansar durante a noite. Tentou praticar atividades físicas antes de se deitar. Porém, certa feita, passando em frente a uma birosca, na dúvida se tomava um trago de rum – viu uma caminhonete verde estacionar, e maquinalmente três voluntários vestidos de branco serviam uma sopa branca para mendigos que lá surgiam.

Os famintos pareciam ter surgido do nada. Tampouco os voluntários falavam palavra. Consensualmente os pobres e os voluntários executavam aquele ritual sem trocar palavras. Alguns resmungos. Mas sem palavras.

Luciano parado no balcão (não lembrava de ter pedido, mas o copo de rum já estava em sua mão) sentia uma tristeza absurda de ver aquilo. Lembrava de uma frase de seu pai:

‘Fome é muito triste, Luciano. Não se deve nunca deixar ninguém passar fome. Nunca negue um prato de comida.’

Pensou numa ocasião, em que saiu do mercado com a filha, e um mendigo pediu um quilo de açucar e um saco de café. Deu ao pedinte o que lhe foi pedido. Depois, orgulhoso de ter feito um gesto bonito em frente a filha – sentiu vaidade e esperança que a menina aprendesse isso com ele. Tratar bem o próximo. Porém, logo no instante seguinte, sentiu uma vergonha máxima – por sentir prazer na caridade. De fazer algo de bom, aguardando o reconhecimento do próximo.

Ia levando a memória do pai e da filha, enquanto os comensais tomavam a sopa com desesperada fome. O caldo branco ia sumindo dos panelões, servidos em tigelas de plástico.

Assim como surgiram, os mendigos desapareciam. Luciano não percebeu bem o momento, mas começou a conversar com os três voluntários, combinou de ajudá-los na noite seguinte.

Isso tinha começado fazia uma semana. Desde então, Luciano começou a dormir pior ainda. Ter febre durante o sono. E uns sonhos absurdos.

(FIM CAPÍTULO 1)

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uns gatos na rua

•abril 8, 2014 • Deixe um comentário

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Se eu tivesse coração, eu ia estar comovido demais. Poucas horas atrás, estava dirigindo, virei a esquina e vi dois gatos, pequenos, minúsculos, filhotes. Aquela olhadela de instante, pensei em um milhão de histórias, coração de ouro, lembranças, esperanças que eles fossem felizes.

Entre o farol de carro, vi que os dois estavam caminhando até o corpo inerte de um gato maior, recém atropelado. Conclui que era a mãe deles.

E os gatinhos cheirando o corpo duro da mamãe gato.

Ainda bem que não tenho coração. Senão, não iria conseguir dormir por nada do mundo.

Estou acordado.

Na beira do Mar

•abril 2, 2014 • Deixe um comentário

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Na beira do mar, chamarei Iemanjá.

Que dia fluxo de consciência. Que delicia, falar, escrever, sei lá.

Bebo minha cerveja, hás tantas e tantas da manhã. E é engraçado, que é tudo sobre isso. Sobre a Skol, sobre meu Deus protetor. Por uma madrugada (primavera?) que a gente quer que chegue. Que a gente quer tanto que não demore.

(Meu psicólogo me ensinou para não coletivizar a culpa, a vontade).

Mas tem hora, que a massa vira massa amorfa. Vira um todo. O Nelson falava nisso também. Na massa heterogênea.

Explico, esse é o momento em que deixamos de ser individuo. Quando aceitamos a vontade da turba, e juntos aceitamos e somos aceitados. Vamos para a direita, esquerda, queime, pegue fogo. Que coisa boa ser parte de um todo.

Hoje foi um dia lindo. Imensamente bonito. No primeiro momento, estava cínico. Cheguei a Pampulha com dificuldades, e acompanhei o fim de manifestação.

Mas não era fim. Nunca foi.

Ai sim. Fomos surpreendidos novamente. Todo meu cinismo, em cheque. Mas o ‘mate kill’ está pra outro lado.

Mas qual lado? Em que lado?

Apresentação Graveola – 07/12/13

•dezembro 8, 2013 • 1 Comentário

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Com licença, meu nome é Luciano, e antes da apresentação musical desta noite, eu queria lhe pedir a atenção para falar umas poucas palavras. Fruto de algumas mal traçadas linhas, que escrevi. Eu nunca sei a concordância correta desta frase. “Mal traçadas linhas”.

Linhas essas que irão tratar de minha perspectiva, enquanto público. Pode ser chato ouvir uma primeira pessoa – primeiro pessoando. Mas vamos lá, correr o risco. Além disso, o bocejo é livre.

Esse momento, essa gota de realidade que estamos vivendo agora, que já está passando, é o resultado de um desencadeamento de outros eventos passados. Eu só vim aqui porque meu caminho levou a isso. Você só está sentado ao lado da pessoa que está ao seu lado – porque vocês se conheceram numa determinada tarde chuvosa como essa, ou talvez quente como o inferno. Quiçá, você esteja conhecendo o amor de sua vida agora. Três fileiras abaixo de onde tu está sentado. Ali. Um pouco mais pra direita. Viu? Achou!

Um dos primeiros shows que eu me lembro de ter assistido do Graveola também foi num teatro. Na realidade foi na sede do Tucá. Lá na rua Carangola. Que eu não sei por que, eu sempre confundo com a rua Grão Mogol. Não a rua em si. Eu confundo o nome delas.

Esse show foi em que? 2007? 2006? A memória me traí. Amante infiel, a memória. Formação da banda era outra. Minha formação de alma era outra. Lembro-me que no inicio do ano seguinte, fui noutro show do Graveola. Também, num teatro. Aquele do Parque Municipal. Francisco Nunes? Me lembro da sensação. De imagens, flashes. Fotogramas mentais. Lembro que fiquei com uma música na cabeça. ‘Chico Buarque vai a Copa de 2006’.

Como você, leitor já pode ter percebido, não estou aqui para falar de música. Estou aqui para falar de memória. E impossível não perceber neste instante aqui, o acumulo de todo um processo histórico de retomada do espaço urbano, da cidade de belo horizonte. Que essa turminha do barulho aqui é pilar, protagonista. Carnaval, Praia da Estação, Espaço Comum, a jornada de junho… o sol, o concreto… em vilipendiação de regras absurdas. Que eu quero dizer com isso é: contestação do que não está correto. Do que achamos errado. Não está certo. Não passará. Não esqueceremos!

Estou longe de ser porta voz de qualquer movimento. As vezes, inclusive sou muito cínico. Mas me sinto sim, no direito de vir aqui e falar para e com vocês. Porque a banda é protagonista. Mas você também é protagonista. Quantos e quantos protagonistas eu vejo de cá. Protagonista de nosso enredo pessoal.

O primeiro show que eu vi do Graveola foi num teatro. Hoje está chovendo. Vou ver outro show do Graveola num teatro. Lindo esse teatro. Lindo estar aqui. Que bom, que bom, que bom ser contemporâneo seu.

Nós somos os filhos do meio da história, e nosso tempo é sensacional.

É bom a gente aproveitar. Que essa noite nunca mais vai se repetir. Mas ‘nunca mais’ é só outro jeito de dizer ‘para sempre’.

Obrigado. Boa noite.

Pirataria

•novembro 20, 2013 • Deixe um comentário

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E na televisão se ouve, lá do outro cômodo ;

– Vamos aos ingredientes:

 

Já no computador, se ouve o que quer. Mas na realidade, sabemos que não é bem assim.

“Mando um beijo na alma do azeião, que é meu irmão”.

 

Mentira. Mentira. Mentira.

“Eu tenho nada contra quem assume!”

 

Dá a impressão de realidade – que toda verdade pode e será construída. Por nós. Nos outros. Mentira. É o tal de livre arbítrio. Tenho duas palavras sobre o livro arbítrio.

 

Mentira,

Mentira.

 

Falo tudo sobre isso (mentira), ou alias, falo tudo isso, para falar sobre a livre circulação de cultura. Sobre a liberdade que o piratismo, ou pirataria, ou creative comuns, ou o nome que você quiser chamar – confere. Mentira.

 

Claro que sim: Dá se mais liberdade. Que será tardia. Mais sim: Podemos bater um pouco no porco velho gordo e escaldado capital. Capital. Que eu gosto de chamar de ‘poder nômade’. E o Carlos Marx chamava lá de capitalismo. Dá pra bater sim. Mas dá pra apanhar. Muito. Bate ele. O gesto de baixar um filme, baixar um disco, considero, um gesto político. De espasmo diante de um remoto controle.

 

Aí, quando eu era mais novo tinha as coisa dos conceitos. Tinha um deles que falava na ‘iconofagia’. Que é o conceito do poder dominante de usar o argumento contra poder dominante (assim mesmo, repetitivo) e usar como produto. Coisa de colocar o rosto do Che Guevara num biquíni da top model. Usar o rap como produto – hip hop. Ripi Rópi. Hopi Hari.

 

O tempo vai mudando e vou ficando com mais cacoetes. Entendi que não tem o que fazer. O espasmo vai virando uma reação a febre. Febre de dor, temperatura alta, desistência. Lembrança.

 

Sigo baixando. Sigamos baixando. O nível.

 

Tem um clube, lá onde nasci, com o nome dos fundadores escrito numa placa do hall de entrada. Imigrantes. Verdade nisso. Do passado. Tem o nome dos meus avós, dos meus bisavós. E no inicio da linha temporal, começa ‘Homus (cidade, lá da Arábia) fundada em 2300 antes de cristo’.

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Tudo é antes de Cristo. Ou depois do próximo Cristo. Acho um detalhe bonito do Francisco de Assis a humildade. Saber por A + B que não somos os criadores do mundo, criadores da realidade. Porque a realidade é conhecida e re co nhe Cida a cada momento que abrimos os olhos.

 

O que acontece se fecharmos os olhos para sempre? Vai ter um momento em que vamos fechar os olhos para sempre? E aí?

 

Será que vai ser como naquela parábola budista? Caiu-se uma arvore na floresta e ninguém ouve o barulho do tronco caindo no chão? Sendo assim, a arvore caiu mesmo?

 

(enquanto isso, na televisão, o Bira ri. Ri a beça).

 

Gosto de acreditar que sim. Que a arvore caiu.

 

Mas como eu vou saber? Eu não estou lá. A realidade está sendo construída. Antes, durante e depois de existir a gente.

 

Então ta. Estamos nos apropriando do conhecimento, da criação do outro. Quero acreditar que essa construção é conjunta. Que é fidedigno meu direito de apropriação. Ma(i)s como me apropriar de algo que nunca será meu? Que nunca foi nosso. Porque não é de ninguém.

 

Hommus. Fundada em 2300.

 

Antes de Cristo.

 

Antes.

 

De.

 

Cristo.

 

 

Tamara Apaixonada

•novembro 7, 2013 • Deixe um comentário

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Ato 1

            Tamara chega em casa, esbaforida, sonhadora. Nem percebe que bate a porta ao chegar. Feliz, mais feliz impossível. Alias possível claro que é. Porém, está muito feliz. Radiante! Joga-se no sofá da sala. Canta sozinha!

 

Tamara: Como estou feliz, tra lá lá!

 

Tamara, tão absorta, nem repara que o pai está em casa. O senhor, já entrado nos quarenta, com decepções de mais e cabelos de menos. No conforto do lar, veste chinelas, e calção. Está sem camisa, e sua em abundancia. Olha meio que sem reconhecer a filha. Com uma expressão de ligeira dúvida, se aproxima da garota, que não percebe a chegada do pai. Este a beija na cabeça, sentindo dor nas costas, ao praticar o movimento necessário.

 

 Alaor: Apareceu a Margarida!

 

Tamara: Que susto pai!

 

 Alaor: Pois é filha. Você parecia que nem estava aqui!

 

Tamara: Ai pai! Pois é. Feliz! Muito feliz.

 

 Alaor: Nem parecia. Saiu hoje com uma tromba danada!

 

Tamara (pensando): Verdade, eu estava bem chateada mesmo. Mas aconteceu algo maravilhoso!

 

Alaor contente pela filha vai sentando no sofá, pedindo para a garota arredar para o lado – magicamente, abre uma lata de cerveja, que não estava em lugar nenhum. Como que trazida por um contra regra invisível.

 

 Alaor (dando um gole): Coisa maravilhosa?

 

Tamara: Estou amando papai! E sou amada! Pelo homem mais maravilhoso do mundo!

 

 Alaor (não acreditando): Está amando? E hoje de manhã? Não estava? Está de namorado, meu anjo?

 

Tamara: Estava triste papai! Estava. Mas é complicado! Deixa pra lá. Estou tão feliz agora! Ele é maravilhoso.

 

 Alaor: E posso saber o nome deste rapaz?

 

Tamara: Ai pai. Ainda tem isso! Você não vai acreditar na coincidência…

 

 Alaor: Qual filha? Hoje eu to acreditando em tudo!

 

Tamara: Ele tem seu nome. Se chama Alaor! E é o homem mais bonito do universo! Você tem que o conhecer!

Tamara pula e saltita e ensaia pequenos passos de balé. Ao redor dela, voam passarinhos! Que linda, sorridente – uma perfeita bailarina. O ar todo fica cor de rosa. Em close, brinca e sorri, em perfeita harmonia com o cosmo.

 

 Alaor (divertido): Que mágica besta!  Alaor?

 

Tamara: Sim Pai. E é o homem mais maravilhoso que existe!

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 Alaor: Sei… Maravilhoso! E o que faz esse tal? Como você o conheceu? Conta tudo!

 

Tamara (sentando no sofá, após mais um rodopio): Ele não faz nada!

 

 Alaor: Nada? Como assim?

 

Tamara: Nada. Ele não faz nada. Coisa nenhuma. O dia todo, todos os dias.

 

 Alaor: Então, ele é alguma espécie de vagabundo?

 

Tamara: Isso pai! Exato! É o maior vagabundo da cidade!

 

Alaor levanta. Não está nervoso, decepcionado ou coisa assim. Simplesmente anda pelo apartamento, pensando naquele genro desconhecido e inútil. Até que estaca:

 

 Alaor: Mas é impossível filhota. Que ele não faça absolutamente nada!

 

Tâmara (condescendente): Verdade pai! Ele bebe muito. Ia até me esquecendo. Ele bebe diariamente!

 

 Alaor (rindo, divertido): Diariamente? Então ele é alcoólatra?

 

Tamara: Bêbado! E quando bebe vira outra pessoa. Agressivo e trapalhão.

 

 Alaor: Qua qua qua! Já estou imaginando a figura!

 

Tamara: Não dá nem pra imaginar! Ele é lindo! Careca. E bem barrigudo!

 

 Alaor: Que tipão, né? Deve ser um tipo bem namorador, não é mesmo?

 

Tamara: Tem isso. Ele é nojento. Um infiel de primeira. Mentiroso como ele só. Típico babaca! Me trata mal! Só vendo pra acreditar. Estúpido. Ignorante…

 

 Alaor: Mas pelo que você está me contando, esse tal  Alaor (fuma um trago de cigarro, solta a fumaça e bate a cinza) é um idiota.

 

Tamara: Isso. Um babaca! Como eu o amo.

 

Alaor vai até a cozinha. Enquanto isso, Tamara pega o aparelho celular, e manda uma mensagem (provavelmente) para o amado. Sorri muito. Sua alegria é pornográfica. Decorrido um intervalo meio longo, constrangedor, o pai volta com uma garrafa de Rum, uma garrafa de coca, dois copos largos e limões. Senta-se à mesa, e calmamente prepara um drink. Serve um copo para si, e prepara outro para a filha.

 

 Alaor: Tamara?

 

Tamara (Acordando do mundo distante em que está): Oi papi.

 

 Alaor: Eu estava pensando aqui. Sobre esse seu namorado…

 

Tamara (interrompe): Noivo.

 

 Alaor: Como assim?

 

Tamara: Noivo. Ele não é meu namorado.  Alaor é meu noivo.

 

 Alaor: Pois bem. Que seja. Noivo. Decerto ele tem que ter uma ocupação…

 

Tamara: Ah, me esqueci de comentar! Tem mesmo!

 

 Alaor: Ah, o mistério tem fim. E o que ele faz? Eu digo, além de beber?

 

Tamara: Ele cheira cocaína!

 

 Alaor: Jura?

 

Tamara: Sim. Cheira, o máximo possível. E bebe. E fuma! E não trabalha. É o homem mais maravilhoso do mundo!

 

 Alaor: Mas ele cheira todos os dias?

 

Tâmara (como se explicasse o óbvio): Claro que não. Porque o dinheiro não dá. Pelo fato de ele ser desempregado, e tal… Mas ele tenta! Ao menos cinco vezes por semana ele cheira!

 

 Alaor (rindo, feliz): A cada minuto, eu gosto mais desse seu namorado.

 

Tamara: Noivo.

 

 Alaor: Isso, isso! Noivo. Gosto mais desse seu noivo.

 

Tamara: Que bom papai. Sinto que vocês vão se dar muito bem. Quero muito sua aprovação nesse namoro. Noivado.

 

 Alaor: Como foi que vocês noivaram? Foi hoje?

 

Tamara: Eu já o tinha pedido em casamento, mas hoje…

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Cortina se fecha. Quando se abre, estamos no banheiro da casa de Alaor. O noivo. Uma balburdia completa. Sujeira por todo lado. O chuveiro está ligado. Lá de dentro, Tamara dá um banho no namorado. Noivo. Dá pra perceber as silhuetas do jovem casal. Vez em quando, Alaor golfa e quase vomita. Tamara dá palavras de incentivo, enquanto lava o corpo do ser amado. Cortina se fecha, e abre novamente. De volta a sala de Alaor (pai) e Tamara. Ambos estão terminando seu copo de Cuba Libre.

 

 Alaor: Que lindo filha. Fico tão feliz por você. Mas tão feliz.

 

Tamara: Pois é pai. E o melhor eu não te contei! O  Alaor é escritor.

 

 Alaor: Jura filhota? Escritor? E ele já escreveu alguma coisa?

 

Tamara: Nada! As vezes ele publica um post no facebook. Ou tuita alguma coisa. Mas é só quando ele não pode evitar. De maneira geral, ele está sempre de ressaca.

 

 Alaor: Ele deve ser bem perturbado né? Mentalmente? Digo, já que não faz nada o dia inteiro, e não sai de bar e de boca de droga…

 

Tamara: Sim, sim! Ele é desequilibrado! Bate boca com deus e o mundo. E se acha um injustiçado, perseguido! Se entope de remédios. Além disso tudo, tem delírios de grandeza. Se considera um gênio incompreendido!

 

Alaor gargalha pela filha. A felicidade da herdeira o contagia. Emocionado a beija, como se já a estivesse levando pro altar, linda, virginal.

 

 Alaor: Hoje é um dos dias mais felizes de minha vida! E quando eu vou conhecer esse meu genro? Que eu já considero um filho!

 

Tamara: Surpresa papai. Vendo que o senhor ficou tão feliz com a historia toda eu mandei uma mensagem para ele. Ele deve chegar a qualquer momento para conhecer você.

 

 Alaor: Jura filha? Jura? Que ótima noticia? Mas a casa está uma bagunça… Que vergonha desse rapaz, que é quase um comendador, uma fibra moral da nação!

 

Começa a levantar e arrumar rapidamente a casa, levando as latinhas de cerveja vazias para a cozinha e esvaziando o cinzeiro. Imediatamente a campainha toca. Tamara pisca em silencio para o pai, ajeita o vestido. Abre a porta. Um enorme e desengonçado vaso, com uma gigante samambaia aguarda do outro lado – no corredor,

 

Tamara: Pai, (apontando para a planta) este aqui é Alaor.

 

Close em  Alaor Pai. Emocionado, quase chorando de felicidade.

 

 Alaor: Que honra conhecer, este homem que tão feliz torna minha filha.

 

Câmera vai fechando o ângulo na planta / genro. Até que as folhas tomam toda a tela. O mundo fica verde. Que vai ficando verde escuro. Até ficar preto.

 

 Alaor Genro: A honra é toda minha. A honra é toda minha.

 

FIM

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Roteiro – Cafa nas Nuvens

•outubro 31, 2013 • Deixe um comentário

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Roteiro: Lero lero nas montanhas

 

Personagens:

Luciano: Amargo e cheio de tiques.

 
#1. Morro do rola moça. / Tarde de sol – alvorecer / fim do dia

Luciano estaca, sem preâmbulos, sem dificuldades e simplesmente lê um texto. As vezes ele pode ler em folhas corridas, dentro de um jornal ou um tablet. O esforço da leitura é essencial. Erra, caminha, como se as vezes falasse pra um público invisível. As vezes, claquetes e barulhos simulam que sua solidão é compartilhada. Ao longe, a montanha muito vasta.

 

Inicia o roteiro. Que inclusive começa com a leitura do roteiro. Chame de metalinguagem ou carma.

 

“Luciano estaca, sem preâmbulos, sem dificuldades e simplesmente lê um texto. As vezes ele pode ler em folhas corridas, dentro de um jornal ou um tablet. O esforço da leitura é essencial. Erra, caminha, como se as vezes falasse pra um público invisível. As vezes, claquetes e barulhos simulam que sua solidão é compartilhada. Ao longe, a montanha muito vasta.

 

Incia o roteiro. Que inclusive começa com a leitura do roteiro. Chame de metalinguagem ou carma.”

 

Bem, chegado ao final desta primeira etapa, vamos a segunda. Maldita segunda. Sou um meio autor, um meio escritor, um meio roteirista. Somado esses três meios, temos mais que um inteiro. Deveria falar ‘terços’? Pois bem. Que sejam terços. Que sejam pinos. Que sejam goles. Que sejam cocaínas.

 

Bastam de amigos falsos. Bastam de ameaças de processos. Conforme vocês (se é que estão prestando atenção) podem ter percebidos, isso é um texto sobre má sorte. Ou chame de carma. Cada dia penso menos no audiovisual. Mais na palavra falada, na palavra cantada, Foda-se a palavra. Chame de carma. Ou de má sorte. Deus amado. Eu queria um Carlton agora.

 

Fuma um Carlton. Apaixonadamente. Como se fosse o último.

 

A fantasia me faz delirar. De que país vem esse carnaval.

 

O congo belga me faz delirar,

 

O que vocês não entendem é que essa poesia é áudio poema. É vídeo poema. É um ska do Robertinho do Recife. Repetição. Ska Ska Ska. Tcha Tcha Tcha.

 

As coisas vão passando e os solos de guitarra vão se somando. As raivas vão se subtraindo. E traindo. Porque toda relação não deixa de ser uma traição. Dia desses, (há mil anos, na verdade) uma moça que eu estava apaixonado foi a farmácia. Pediu uma “pílula do dia seguinte”. E a partir disso, o farmacêutico sentiu-se no direito de cantar ela. A lógica é > ‘é uma promiscua’ E tem uma moça, que estou apaixonado, que não gosta de sentar sozinha em bar. Pedir sozinha uma cerveja. Porque sempre recebe uma cantada. E por outros motivos que me escampam a atenção. Me escapa o raciocínio. Só me lembro dela agora. Emo Motivos. Multi Motivos.

 

E acaba que sou monotema. É uma doidice que essa dança dá. Solos de guitarra de não vão me conquistar.

 

Já falei de ocupação urbana. E do diabo a quatro. Mas agora é a hora de montanhas e risadas gravadas;

 

Se a natureza não me abandonar.

 

Ska;

 

Ska;

 

Ska.

Adelaide – Parte 5

•setembro 3, 2013 • 1 Comentário

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Depois da quinta capirinha, pega Mingau e saí com ele na D-20. Insiste em telefonar para Ana há vários minutos. E antes de sair de casa, fuçou (tropego e bêbado) no computador da filha. Mexeu em anotações. Acha que sabe onde é a festa para onde a garota foi com a Adelaide.

Na juventude (não que fosse um velho), tinha o habito de perseguições. Ia com o carro, devagarinho, onde imaginava que fosse encontrar uma ex namorada. Quase chegava as vias de fato, de esmurrar. Mas a compleição física frágil sempre impediu qualquer ato agressivo. Morria de medo de apanhar.  Então, se saciava com o uso da violência psicológica. Saltos de humor, gritos e ameaças costumavam ser suficientes para engendrar traquitanas e malandrices sobre a pessoa amada.

Fedendo a álcool, acelera a caminhonete ano 96 (que por sua vez fedia a diesel). Mingau, muito preguiçoso se espreguiça no banco do veículo. Após uma curva mal feita, em que sobe ligeiramente sobre o meio fio, dá de cara com uma blitz da lei-seca. Puta merda. Fudeu.

  ******************

–        O senhor já deve saber o riscado né?

–        Hã?

–        Isso do seu lado é um cachorro?

–        É. Mas é bem velhinho.

–        Mas é um cachorro enorme. Não pode andar no banco da frente.

–        O oficial me desculpe, mas meu carro não tem banco de trás.

–        Quero dizer, que raça é essa? Bem,  esse cachorro não pode andar sem estar na caixinha.

–        Meu querido policial. Isso aqui é um rotweiller de doze anos. Ou treze. Bem, ele é velho, e pesa mais de cinquenta quilos. Não tem caixinha que caiba esse danado desse bicho.

(enquanto o debate sobre Mingau decorre, Rani enfia três trident de morango na boca, para disfarçar o bafo de caipirinha)

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–        Bem, me veja os documentos aí. Os seus e o do carro.

–        Estão aqui.

(o policial passa a lanterna pelo carro. Encontra uma bananga).

–        Seu Rani. Você fuma maconha? Isso aqui é uma ponta de cigarro de marijuana.

(morre de rir {internamente} do termo usado pelo policial para se referir ao baseado)

–        Olha seu guarda. Não vou mentir para você. Isso é maconha sim. Tenho vários amigos puxa-fumo. Mas pessoalmente eu não estou envolvido com psicotrópico há muitos anos. Sou mais da cervejinha.

–        Então o senhor bebeu. Por isso que fez essa curva subindo o meio-fio?

–        Não. Isso foi o meu cachorro pulando em cima de mim.

–        Porra, mas então esse cachorro não pode ficar pulando no seu colo. É um perigo.

–        Não, na realidade…

–        Meu amigo. Você tá chapado, com um rotweiller no banco de passageiro e com maconha no veículo.

–        Eu não to chapado.

–        Não tá chapado?

–        Não.

–        Então eu posso te pedir para soprar o bafômetro.

–        Claro.

–        Posso?

–        Pode.

–        Então vem acá.

–        Olha major.

–        Soldado.

–        Pois bem. Soldado. Eu adoraria soprar o bafômetro. Nada me daria mais prazer do que soprar esse bafômetro agora. Mas estou envolvido numa questão urgente.

–        É mesmo?

–        Completamente.

–        E qual é?

–        Estou achando que minha filha foi levada para uma curra.

–        Uma o que?

–        Uma curra. Vão arrombar minha menina.

–        E quantos anos tem sua filha?

–        Dezesseis. Alias. Quinze. Nova.

(para corroborar a tese da curra, Mingau começa a chorar, gania em agonia).

–        Viu? Cachorro sente essas coisas. Olha como o bichinho tá desesperado. Pobrezinho,

(com o celular em punho, Rani mostra uma foto de Ana para o policial e em seguida para Mingau – que começa a uivar loucamente).

–        Capitão, minha filha tá sendo descabaçada enquanto eu estou aqui nesse bate-papo.

–        É soldado.

–        Sim, soldado. Mas com coração de almirante. Quebra essa aqui pro tio!

–        Hurm…

–        Poxa…

–        Hurm…

–        Facilita.

–        Ok…

–        Muito obrigado tenente!

–        Mas o baseado fica…

–        Acho ótimo! Eu não teria outro desejo.

E vai embora, coçando a orelha de Mingau, seu melhor amigo, que suspira e se espreguiça. Engata a segunda, a cachaça já evaporando de sua cabeça. Se sente mais esperto, a adrenalina lhe deixou mais ligado. A lábia sempre foi seu forte. Sente-se capaz de enganar o papa.

Lança um olhar de ternura para o cão. Que responde com uma sonora flatulência. Todo o carro fede.

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Adelaide – Parte 4

•agosto 26, 2013 • Deixe um comentário

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Acordou assustado. Coração batia muito rápido. Lembrou da sensação do ataque cardíaco. Um sentimento de esvaziamento de si. Tinha a dor que começava no braço esquerdo e ia tomando todo o corpo. Foi horrível o ataque. Mas sobreviveu. Médico recomendou: “Pare com o porco Rani. Pare de comer porco. Simples assim. Para com essa obsessão pela carne suína.”

Mais uma verdade sobre Rani Guerneta: Adorava carne de porco. Na ordem, seu modo preferido de consumi-lo, eram:

1 salame

2 joelho

3 presunto

4 mortadela

5 peperoni

6 bacon

7 linguiça

8 feijoada

9 lombo

10 pernil

Era o anti islâmico, o anti judeu, o anti adventista. Adorava a carne de porco, e via em sua sanha pelo Eisben (como é chamado o joelho no preparo alemão) um gesto político. Uma atitude de ateísmo praticante. “Como uma religião pode permitir a poligamia e impedir o homem de comer um inocente pão de queijo com linguiça?”

De toda maneira, isso não importa. Importa é que Rani acordou assustado. Coração batendo rápido, muito rápido. Tinha tido um pesadelo, não? Tinha, devia ser isso. No sonho carregava o peso de ser arauto dum destino ruim para todo o planeta. Tinha pés de bode no sonho, e atraía moscas consigo. Mesmo sua carga sendo pesada, avisava, um a um, aos habitantes do planeta: “Olha, a Terra vai ficar escura. Eu venho aqui te avisar que a Terra vai ficar escura”.

Despertou justamente no seu quarto, tão escuro. Inerte, Mingau roncava ao lado. Tentando identificar as formas dos objetos na penumbra olhou para o cabideiro. Os chapéus dispostos de qualquer jeito, faziam o contorno de um homem de muitas cabeças. Porém, já  grandinho, sabia que essa era ilusão antiga, um cabideiro é um cabideiro, da mesma forma que um cachimbo é só um cachimbo.

Deixa o cão dormindo e caminha pela casa. Ninguém em nenhum cômodo. Onde Ana estava? Lembrava que a menina tinha lhe dito algo. Ia sair? Na casa da mãe ele não está? Está? Não, Júlia está no nordeste. Natal é no nordeste, certo? O sono o deixava burro, e ficava lembrando-se do sonho de porco, das moscas. Estava sujo? Não fedia, mas a dobra de pele na barriga suava.

Paula Rego

Lembrou. A filha tinha saído com a outra. Adelaide. Delícia de menina. Não tinha visto que horas elas tinham saído. Pra onde elas teriam ido? Que noite cansativa. Que acumulo de interrogações.

Na cozinha, começa a preparar seu kit absurdo alimento / alcoólico para começar a acordar. Relógio marca uma da manhã. Vai tomar seu tradicional chá de camomila, e preparar o refogado de tomate com bacon. Enquanto isso, senta a cara na cerveja. Alias, hoje é sábado, dia de caipirinha.

Telefona para Falafael, amigo de longa data:

–        Oi quibão. Como vai essa força. Tentando arrumar uma foda? Noite de sábado é noite de foda.

–        Estava dormindo.

–        Anima de ir comer um joelho de porco?

–        Joelho de porco? Essa hora?

–        Hoje é sábado. Dia perfeito para comer porco. É praticamente uma afronta. Ingerir gordura no meio da madrugada é um gesto social.

–        É um gesto rumo a outro ataque do coração.

–        Não vai animar?

–        Não. E tecnicamente agora já é domingo. Então, seu gesto está atrasado.

Entre a segunda e a quarta caipirinha começa a preocupar com a filha. Já era três da manhã, e decide ligar para a menina. Mingau estava dormindo (e como dorme esse cachorro) em seu colo, e foi um desafio levantar para pegar o telefone.

(tu tu tu)

–        Porra filha, e atender essa merda de telefone que eu te pago, você não atende?

(caixa de mensagem tu tu tu)

Lagos40_kopie (1)

Adelaide – Parte 3

•agosto 22, 2013 • Deixe um comentário

Gustave_Courbet_auto-retrato

Mingau latia latia latia. O rottweiler também está velho. Us treze anos. No aniversário de dois anos de Ana, Rani cometeu outra daquelas mentiras estapafúrdias. Comprou um rottweiler dizendo que era um presente para a menina. Ana mal andava. Concatenava as palavras com extrema confusão. Cínico Rani deu para a filha um rottweiler. Repito. Um rottweiller. Júlia (mâe de Ana) deu escândalo.

–        Rani. Você é muito babaca. Sabe que rotteiller não se dá com criança.

–        Porra Júlia. Que que tem? Você adora cachorro. O cachorrinho é lindo. Tadinho. Tão pequenino. Quem faz o cachorro é o dono. E eu sempre quis ter um rott pra mim.

–        Justamente. Você sempre quis ter um rott. O cachorro é seu. Não vem achar que vai conseguir empurrar esse monstro pra minha filha.

–        Mas é que eu esperava que você fosse meu ajudar a criá-lo. Sendo que você tem quintal em casa. Pode ser?

–        Tá de foda comigo Rani? Quem pariu Matheus que o embale. Você que vai ficar com esse cachorro. Você que cuide dele. Entendeu? Você.

–        Eu?

–        É. Você. E como você vai chamar essa besta fera?

–        Mingau.

–        Mingau? Um rottweiler com nome de Mingau?

–        Queria que eu chamasse ele de ‘Tinhoso’? ‘Coisa ruim’? ‘Exu tranca perna’?

–        Sei lá. Eu tinha pensando em Max… Como naquele filme. ‘Max – Fidelidade Assassina’. Lembra?

–        Mingau. Será Mingau e pronto.

Enquanto corria a conversa, Ana beijava o cachorro na boca. Abraçava-o. Mingau, muito feliz, muito satisfeito dava a barriguinha para carinho. Tão bonito o cachorro. Tão carinhoso.

rotweiller-filhotes

 *****************

            Mas Mingau já estava bem velhinho. Joba, o vira-latas de sua mãe morrerá com dezessete anos, neurastênico no fim da vida. Na ocasião Rani quis ir junto para a descanso eterno. Cerrou-se em profundo pranto. Joba era o ser vivo que mais o amou em toda a vida. E Rani (egoísta que só) não lhe dava a devida atenção. Inclusive, Joba nunca o perdoou por ter adotado outro cachorro – “aquele rottweiler safado” – parecia dizer com o olhar.

Mingau convivia com problemas pulmonares desde filhote. Na realidade foi único sobrevivente de uma ninhada difícil. Parto complicado ficou muitos segundos sem respirar, logo que nascido. Por motivos veterinários bem complexos (e que não vem ao caso) disso redundou a respiração sofrida do enorme cão. Faziam um par engraçado, aquele bigodudo cardíaco e asmático, puxando o pesado canino, que cansava depois da menor caminhada.

E agora, com treze primaveras decorridas, Mingau já acumulava muita remela. Os dentes não tinham mais a potência do passado. O pelo apresentava falhas, aqui e acolá. Rani chorava abraçado com seu cachorro, companheiro problemático de tantas ocasiões. Forte, maciço, o canino deitava com seu dono. Arfava pesado.

Ana abre a porta do quarto.

–        Pai preciso de dinheiro.

–        Porra filha. Some da minha frente. To aqui com Mingau. Ele não tá legal hoje. Deixa a gente em paz.

–        Desculpa, é que eu vou sair hoje.

–        Deixa eu adivinhar. Sair com a Adelaide, certo?

–        É. Com a Adelaide sim. Por que?

Sentia raiva, muita raiva da juventude da filha. Da juventude de Adelaide. E ele e o companheiro, refugos de um tempo antigo. Dois asmáticos. Lembrava do pai morrendo sem ar. E a filha querendo dinheiro para sair. Já tinha peitos a menina. Lindos seios, alias. Mas não como os de Adelaide. Aquilo sim, formavam um belo par de peitos. Duros. E pequenos. Pequenos e redondinhos. Não começavam logo abaixo dos ombros, como certas mocinhas por aí. Simplesmente brotavam, apontando para o infinito. Que peitinhos.

Pensou nos moleques imundos, espinhentos, sebosos, que em breve comeriam a filha. E a Adelaide. Provavelmente comeriam as duas juntas. Enxergou com clareza, as duas chupando um garoto imbecil qualquer. E um jato, enorme, viscoso de porra a descer pelo colo de Adelaide. Agora confundia as duas. Onde começava Ana, onde terminava Adelaide?

Chorava com raiva. Nem percebia mas chorava. Gritava com a filha, jogou o cachorro no chão, pisou-lhe na pata. Mingau gania.

Empurra a adolescente. Tranca o quarto, e se abraça ao pobre animal.

–        O mundo tá acabando Mingau. O mundo tá acabando Mingau. Nosso mundo tá acabando. Mas a gente vai embora juntos. 

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