Fome
Capitulo 1
Certo dia, certa tarde – São Francisco de Assis pousou a cabeça numa macieira. Estava cansado de tanto amar todos os seres vivos, e achava que ele mesmo era Deus, pelo tanto carinho que sentia. Quiz uma saudade do ódio, uma saudade do desprezo. Tinha raiva da própria bondade. Que o tornava menos humano – quase santo. A macieira dava frutos.
Então, percebeu que sua cabeça estava pousada na macieira, mas separada do seu corpo, destarrachada – como se fosse um boneco. Enquanto a cabeça estava lá, seu corpo fodia, doía e ardia, normalmente. Até maltratava bichinhos. Quando foi atingir um passarinho com um estilingue, ouviu uma voz – saindo de um cinzeiro. A voz era de Deus, e falava como se fosse através de um pequeno rádio. São Francisco ficou confuso, pois ainda não haviam inventado o rádio. Nem o som mecânico.
-Francisco, acorda.
– Pai?
– Francisco, acorda – você está maltratando os passarinhos. Machucando gatos. Raspando perna de cachorro com gilete…
– Pai, eu não gosto muito de bicho.
– Gosta, gosta sim. Te fiz para isso. Sua vocação na terra é de amar tudo e apesar de todas as coisas.
– Tudo é muita coisa, Pai.
– Mas foi só o que sobrou para você.
Nesse momento, Francisco começou a sentir muito sono, estava quente e tinha brincado muito durante o dia. A cabeça ficou pesada, os olhos fundos. Sentia uma saudades muito grande, e não conseguia mais ouvir a voz de Deus, vinda do cinzeiro. Começou a pescar de sono, sua cabeça rolou na campina abaixo e foi rolando e rolando até encontrar seu corpo, que pelado – estava com uma cinta presa aonde devia ser seu pescoço.
******************************
Luciano acordou depois de ter um sonho muito estranho. Sonhou que era um santo que pecava. Não lembrava dos detalhes, mas despertou com a imagem de uma cabeça rolando num campo verde – de grama alta. Tinha tido febre durante a noite, e sempre quando tinha temperatura quente, sonhava esquisito. Parecia uma lembrança, parecia um filme.
Andava impressionado, pois coisa de uma semana antes, começou a trabalhar num sopão voluntário, desses de igreja. Não era católico, tampouco acreditava em qualquer coisa que não fosse o egoísmo. Mas, a insônia e o álcool o motivavam a arrumar uma maneira de se cansar durante a noite. Tentou praticar atividades físicas antes de se deitar. Porém, certa feita, passando em frente a uma birosca, na dúvida se tomava um trago de rum – viu uma caminhonete verde estacionar, e maquinalmente três voluntários vestidos de branco serviam uma sopa branca para mendigos que lá surgiam.
Os famintos pareciam ter surgido do nada. Tampouco os voluntários falavam palavra. Consensualmente os pobres e os voluntários executavam aquele ritual sem trocar palavras. Alguns resmungos. Mas sem palavras.
Luciano parado no balcão (não lembrava de ter pedido, mas o copo de rum já estava em sua mão) sentia uma tristeza absurda de ver aquilo. Lembrava de uma frase de seu pai:
‘Fome é muito triste, Luciano. Não se deve nunca deixar ninguém passar fome. Nunca negue um prato de comida.’
Pensou numa ocasião, em que saiu do mercado com a filha, e um mendigo pediu um quilo de açucar e um saco de café. Deu ao pedinte o que lhe foi pedido. Depois, orgulhoso de ter feito um gesto bonito em frente a filha – sentiu vaidade e esperança que a menina aprendesse isso com ele. Tratar bem o próximo. Porém, logo no instante seguinte, sentiu uma vergonha máxima – por sentir prazer na caridade. De fazer algo de bom, aguardando o reconhecimento do próximo.
Ia levando a memória do pai e da filha, enquanto os comensais tomavam a sopa com desesperada fome. O caldo branco ia sumindo dos panelões, servidos em tigelas de plástico.
Assim como surgiram, os mendigos desapareciam. Luciano não percebeu bem o momento, mas começou a conversar com os três voluntários, combinou de ajudá-los na noite seguinte.
Isso tinha começado fazia uma semana. Desde então, Luciano começou a dormir pior ainda. Ter febre durante o sono. E uns sonhos absurdos.
(FIM CAPÍTULO 1)